sábado, 4 de abril de 2015

É Páscoa outra vez




Domingo de Ramos, celebramos a entrada festiva e triunfal de Jesus em Jerusalém. Todos queriam vê-lO, tocá-lO, gritar o seu ‘estou conTigo’, Amém, Aleluia, Hossana. Jesus conhecia os seus corações e distinguia os sinceros, os falsos que só estavam a ver onde paravam as modas e os que estavam ali porque todos os outros também iam.
Domingo de Ramos, muitos doentes entraram em hospitais, para a urgência ou para internamento. Para alguns foi também a sua entrada na ‘cidade’ para onde tinha sido projectado o seu encontro com a morte, o seu Calvário em Jerusalém. A caminhada final ao encontro do Criador.
Quinta-feira Santa, os católicos comemoram a Ceia onde Jesus definiu a primeira missa: serviço aos irmãos, bem explícito na lavagem dos pés, e na mais alta doação: comei o meu corpo e bebei o meu sangue. Assim aconteceu e continua a acontecer. Comemos o seu Corpo e bebemos o seu Sangue, embora nem sempre isso seja por nós digerido, mas apenas expelido: não recolhemos no Corpo e no Sangue do Senhor a Força do Espírito que nos impeliria ao serviço dos irmãos, dos mais pobres, dos mais frágeis, dos que habitam connosco a mesma casa.
Sexta-feira Santa, comemoramos a morte de Jesus. Numa solidão aterradoramente triste, despojado de roupas, de amigos (Ah! Os de Domingo de Ramos, onde estão?), Cristo sofre tão sozinho que já nem sabe se o Pai o abandonou ou virá finalmente buscá-lO. No mesmo dia, percorremos o caminho sofredor de Jesus, em vergonha e humilhação pública, derrotado por todos os seus opositores religiosos e, principalmente, políticos (muitos preferem esquecer que Jesus foi essencialmente um homem político, porque a religião já existia), vergado sob o peso da cruz, dos insultos, das cuspidelas e agressões gratuitas de tantos cobardes judeus (hoje são os cristãos que cumprem esse ritual de cobardia), os que não conseguiram vencê-lo no contraditório de tantas discussões, apressam-se a dar largas ao seu espírito vingativo: desce da cruz, ó farrabotas, enganador, mentiroso: não tens poder algum, arremessam em vã acusação.
E nós cristãos, participamos nas celebrações com dignidade ritual ou com espírito dócil? Alguns percorremos as ruas em via-sacra e escutamos insultos. Não gostamos, mas isso também faz parte, os que Ele ouviu foram muito maiores.
Penso em Jesus, sozinho naquele momento e pela minha mente passam tantos filhos de Deus que me parecem Jesus, que tenho dificuldade em distinguir entre eles e Jesus. O Pedro está sozinho em casa, a mulher abandonou-o e o filho também não está lá. Como este, também o José, a Matilde, a Rosa… Pais e mães de família, separados das famílias que passam estes dias de celebração, religiosa para uns e de férias para outros, sozinhos. Penso em tantos doentes hospitalizados, em sofrimento, a morrer, sem família ou amigos que os visitem ou sem família ou amigos, de todo. Tantos doentes e tantos idosos, internados em lares, com as famílias bem longe a passarem uns dias de descanso, e eles nos lares a percorrerem mais uma estação da sua via-sacra. Penso em tantos migrantes, longe das famílias, dos lares, das tradições e cultura deixados para trás, lá longe. Penso em tantos condutores estúpidos que morrem e matam, os que vão com eles no carro e estranhos do outro carro envolvido à força no acidente; de que serve comentar depois que foi um acidente estúpido, se a estupidez foi de quem não foi prudente?
Penso que se Jesus quisesse voltar e viver tudo outra vez… o Pai não permitiria. Um e Outro, por amor, estariam dispostos a essa kenosis, a essa humilhação de descida do Céu à terra, à dor da cruz e à de ver o Filho morrer. Mas questionam-se: para quê? Que mais haverá para mostrar que os convença. Ainda assim, Cristo encarna todos os dias diante de nós, e mostramos então que somos muito piores que os judeus e os romanos. Pois que foi Óscar Romero, senão imagem de Cristo ao encontro dos que o mataram? Primeiro tentaram comprar os guardas, a imprensa, para que não fosse divulgada a verdade do assassinato. Tentaram mesmo calar o papa. Depois, adoptaram a máxima ‘se não podes lutar contra eles, junta-te a eles’. Hoje, ‘sabemos’, tentam convencer-nos, que ‘todos’ os grupos políticos, mesmo que alguns disfarçados de religiosos, de esquerda e de direita, sempre apoiaram D. Óscar e sempre dele receberam apoio. E são aqueles que o mataram, que não têm vergonha na cara e tentam agora tirar proveito do seu assassinato, fazendo-se de vítimas e amigos do mártir. Não há outra dificuldade em citar mil casos como o de Óscar Romero, através do qual podemos ver o anúncio do Reino e a paixão de Cristo, que a do tempo e espaço para escrever todas essas histórias dos nossos dias presentes.
Escrevo em manhã de Sábado Santo. A celebração da Ressurreição, Vigília e Domingo de Páscoa, vai ser já daqui a poucas horas. O Céu rejubilaria se todos quiséssemos ressuscitar, como o filho pródigo. Rejubilará com os que percorrerem essa via, não obstante os filhos mais bem instalados na vida e as suas críticas, enaltecendo o pecado de cada filho pródigo e fazendo vista grossa às suas virtudes, à sua conversão: como pode um pecador ocupar o lugar que o Pai lhe reservou desde o início dos tempos, interrogam-se. Excluamo-lo, deliberam.
Será mais uma Páscoa, como tantas outras. Cada um de nós terá a oportunidade de ressuscitar com Cristo ou permanecer nos abismos infernais. Eu e tu. Depende cada um de si.

Orlando de Carvalho


2 comentários:

  1. MARAVILHOSO E INSPIRADO TEXTO, INTERPELANTE E DESQUESTIONARAFIANTE, PARA QUEM, AO LER, SE DEIXA TOCAR E QUESTIONAR...

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