sexta-feira, 1 de maio de 2015

Mártires da Arménia


A pretensa indignação dos dirigentes turcos acerca do vocabulário usada pelo Papa Francisco acerca do genocídio praticado pelos turcos otomanos contra o povo arménio trouxe-me à memória o que há uns 10 anos escrevi em 'Os Santos de João Paulo II', sobre este assunto.

O Papa João Paulo II esteve na Arménia e elevou ao altar, por duas vezes, arménios e missionários estrangeiros que foram martirizados neste país porque eram cristãos e não se renderam a renunciar à Fé em Deus para se salvarem da tortura e da morte.

Com a situação agora criada pelos turcos que, em vez de pedirem perdão pelos erros e crimes cometidos, armaram em vítimas cheias de falso pudor, o texto ganhou alguma actualidade e publico-o aqui.

Salvador da Capadócia e companheiros

A Arménia é uma daquelas muitas zonas do mundo que, ao longo dos séculos, vai estando sujeita à violência e ao saque de estados vizinhos mais poderosos, situações que muitas vezes são potenciadas por diferenças étnicas. Ora, a Arménia orgulha-se de ser a mais antiga nação do mundo com uma maioria de população cristã, o que acontece desde antes do ano 300. Nos últimos séculos, de um lado o Estado Russo tradicionalmente expansionista, do outro o Império Turco Otomano não menos imperialista, exerciam uma grande tensão sobre a Arménia. Em finais do século XIX e princípios do século XX, os turcos assassinaram centenas de milhares de arménios e provocaram a deslocação para o exterior de muitos mais. Tratou-se de uma das maiores tentativas de genocídio da História da Humanidade. Por esta razão, muitos tentam negar o estatuto de mártires da fé a Salvador da Capadócia e aos seus companheiros. Alegam essas pessoas que eles não teriam sido vítimas da sua Fé, mas da sua nacionalidade. Ora, não podemos esquecer que a muitos arménios foi dado escolher entre negar Cristo e viver, ou confessar Cristo e morrer.
Alguns optaram por negar Cristo e salvaram a vida. 

Salvador Lili (da Capadócia)

Nasceu Salvador Lilli, a 19 de Junho de 1853, na Capadócia. Foram seus pais Anunciação e Vicente Lilli. O nome vem-lhe, pois, da terra em que nasceu.
Em 1870 entrou para os franciscanos e em 1873 teve que deslocar-se para a Terra Santa devido à extinção das ordens religiosas em Itália. Foi ordenado padre em 1878, em Belém. Em 1880 é enviado para Marasco, na Arménia.
Além de exercer o sacerdócio, constrói escolas, hospitais, lares para os idosos e mais carenciados e, muito importante, ensina modernas técnicas higio-sanitárias, especialmente durante uma epidemia de cólera em 1891. Em 1890 fora nomeado pároco de Marasco. Em 1894 é enviado para a missão de Mujuk Deresi. Em 1895, face ao genocídio sistematizado que os turcos otomanos iniciaram, de arménios de todas as idades, de ambos os sexos, os superiores franciscanos mandam Salvador vir embora, mas ele responde-lhes:
- O pastor não pode abandonar as ovelhas em perigo. 
Em breve os turcos atacam a cidade e um dos feridos é o padre Salvador, que fica detido. Com ameaças e torturas vão tentando que os presos reneguem a fé cristã. Não conseguindo, levam-nos para Marasco e fecham-nos na igreja local, a 22 de Novembro de 1895. Os fiéis persistem em se negar a abjurar a sua fé e são assassinados a golpes de baioneta.
Poupam, no grupo, uma menina de onze anos que será posteriormente testemunha do martírio. São conhecidos sete companheiros de martírio de Salvador Lilli também franciscanos e naturais da Arménia, embora sejam muito escassos os dados sobre eles. Pouco mais sabemos que os seus nomes e que sofreram o martírio por amor a Cristo e ao Evangelho.
Eis os seus nomes:
Baldji Oghlou Ohannes
Khodianin Oghlou Kadir
Kouradji Oghlou Tzeroum
Dimbalac Oghlou Wartavar
Geremia Oghlou Boghos
David Oghlou David
Toros Oghlou David

Líderes cristãos enforcados na Arménia. Imagem comum ao longo dos séculos XIX e XX, perante os ataques de nações vizinhas.

Inácio Maloyan

“Dirijo uma saudação especial aos jovens, pedindo ao Senhor que eles sejam testemunhas corajosas do Evangelho. Durante a minha recente visita à Arménia, pude dar-me conta do apego do povo à fé cristã, cujo testemunho está presente em numerosos episódios da sua história! Este é o bonito testemunho que nos deixa também o Beato Inácio. Homem corajoso e cheio de fé, pôs o amor a Cristo no centro da sua vida e do seu ministério.
Quando a ameaça contra o povo arménio se tornou mais grave e prenunciou a iminência da perseguição, ele escolheu, a exemplo de Santo Inácio de Antioquia, seguir Jesus até às últimas consequências, derramando o seu sangue pelos irmãos. O seu exemplo convida todos os baptizados a recordar que foram mergulhados na morte e na ressurreição de Cristo, e que devem segui-lo todos os dias” – do discurso de Sua Santidade João Paulo II, a 8 de Outubro de 2001, após a beatificação de Inácio Maloyan.



Shoukrallah Maloyan nasceu em Mardin, na Arménia, actualmente na Turquia, no dia 19 de Abril de 1869. Era filho de Faridé e de Melkon Maloyan. Respondendo à sua vocação sacerdotal, estuda no Líbano de 1883 a 1888, altura em que adoece e volta a Mardin. Em 1891 volta ao Líbano, conclui os estudos e é ordenado padre em 1896. Ao mesmo tempo junta-se ao Instituto do Clero Patriarcal de Bzommar e adopta o nome de Inácio, em homenagem a Santo Inácio de Antioquia. A sua actividade eclesial desenvolve-se depois em locais muito diversos, em Alexandria, no Cairo, em Istambul. Em 1910 Inácio Maloyan é nomeado para a paróquia de Mardin, sendo-lhe cometidas as funções episcopais que o bispo Hovsep Goulian tinha deixado de poder exercer devido à idade avançada, em função da qual tinha pedido renúncia à Sé Apostólica. A 22 de Outubro de 1911 é nomeado arcebispo da minoria Católica Arménia de Mardin. O sultão do Império Otomano condecora-o por patriotismo com a Legião de Honra.
Entretanto começa a I Guerra Mundial. Na Turquia encetam-se perseguições à minoria arménia e especialmente aos arménios cristãos. A Dom Inácio são retiradas as condecorações anteriormente atribuídas pelo governo turco; todos os cristãos são demitidos do exército, polícia e função pública; todos os cristãos são forçados a entregar todas as armas que possuírem, sob pena de morte. A 30 de Maio de 1915, soldados turcos cercam a igreja de Mardin e a Sé Episcopal, sob a acusação de aí se esconderem armas. A 3 de Junho, o chefe de polícia Mamdooh Bek chega a Mardin. Dom Inácio é preso com muitos outros católicos, leigos e padres; aos restantes cristãos, os que não foram presos, é-lhes mandado permanecer nas suas casas, e eles assim fazem. As tropas turcas prendem então cerca de novecentos cristãos arménios. São submetidos a julgamento e tentados a converterem-se ao Islão. Dom Inácio respondeu: - Muçulmano? Nem pensar! Não rejeito nem a minha religião, nem o meu Salvador. Nasci no seio da Santa Igreja Católica e aprendi profundamente a sua doutrina, até ser um dos seus pastores. Acho que o derrame do meu sangue pela Fé é a coisa mais doce que posso fazer. Podem torturar-me e cortar-me aos pedaços, pois se for torturado por causa do amor Àquele que morreu por mim, tornar-me-ei numa das mais felizes pessoas e tenho a certeza que verei Deus no Paraíso. 

Foi então chicoteado e torturado.
Arrancaram-lhe as unhas dos pés. Uma semana depois, a 10 de Junho de 1915, Dom Maloyan, catorze padres e quatrocentos e dezassete leigos são conduzidos sob marcha forçada, através do deserto até ao local em que tencionam assassiná-los. Alguns vão sendo separados do grupo, uns são chicoteados, outros desaparecem. O bispo percebe que, a pouco e pouco, os turcos vão matando os elementos do grupo. Pede então a Mamdooh Bek que lhes dê um momento para orarem, ao que ele acede. Dom Inácio recolhe algumas migalhas de pão, consagra-as e distribui-as entre os seus companheiros de martírio. Segue-se então a chacina. Dom Inácio é deixado para último lugar, presenciado o martírio de todos os outros. Depois de todos mortos, o chefe dos algozes turcos, Mamdooh Bek, de má memória, voltou a dar a Dom Inácio a mesma possibilidade que tanto este como todos os outros, entretanto assassinados, haviam já recusado: - - Convertes-te ao Islão, e salvo-te a vida! 

A resposta foi a recusa esperada:
- Vivo e morro para o bem da minha religião e da minha Fé. Tenho todo o orgulho na Cruz do meu Deus e meu Senhor!
Caiu então sob os disparos das armas daqueles que tanto pareciam odiar a Fé Cristã.
O seu corpo terá irradiado luz durante três dias após o seu martírio.

Mapa de Ana Clara Carvalho

In Os Santos de João Paulo II, livro II, Orlando de Carvalho, Lusodidacta, Loures, 2005.
 



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