terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

São Frei Bartolomeu dos Mártires

“O Bispo deve constantemente confrontar a sua vida com o ideal que assumiu, porque a vida convence e atrai mais do que as palavras; só a fraternidade vivida com os seus presbíteros poderá impedir que o Bispo viva «só» no meio das multidões e no meio dos problemas; uma vida pastoral que pretenda responder às diversas inquietações de hoje deverá conciliar a contemplação com a encarnação no mundo; esta pressupõe a humildade que leva o pastor a acolher a verdade que brota tanto do interior da Igreja como de fora dela – um acolhimento com traços maternais, para manifestar «o rosto materno de Deus»” – do livro Stimulus Pastorum, da autoria de Frei Bartolomeu dos Mártires, citado por Dom Jorge Ortiga, Arcebispo de Braga, na 8ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, em 5 de Outubro de 2001, no Vaticano.
 
 
 
Bartolomeu do Vale nasceu em Lisboa nos princípios de Maio de 1514, filho de Maria Correia e Domingos Fernandes. Os pais chamaram-lhe Bartolomeu e baptizaram-no na Igreja Paroquial dos Mártires, devido à grande devoção que tinham por Nossa Senhora dos Mártires.
Em 1528 juntou-se aos dominicanos, que muito gostava de ouvir pregar e acrescenta ao seu nome “dos Mártires”, pela mesma devoção dos pais a Nossa Senhora dos Mártires. Distingue-se em gramática, artes e teologia, mas em tudo mostrando sempre grande inteligência. Foi eleito prior do Convento de São Domingos de Benfica, em Lisboa. Em 1558 foi nomeado Arcebispo de Braga, título que aceitou apenas por obediência. Até chegar a bula papal com a sua nomeação, enclausurou-se no convento de Azeitão. A 4 de Outubro de 1559 entrava em Braga e tomava posse da cátedra arquiepiscopal. Exerceu o múnus episcopal com grande zelo e caridade. Mandou retirar do Paço tudo o que era luxo mundano e futilidade, vivendo com grande modéstia e simplicidade. O zelo evangélico e pastoral em relação ao rebanho que lhe tinha sido confiado é bem esclarecido por Frei Luís de Sousa: “Era fim de Janeiro, tempo ventoso e frigidíssimo. Deixou o abrigo e chaminés dos seus paços, foi-se experimentar os maus caminhos e piores gasalhados das aldeias... Mas queixavam-se os seus que não podiam aturar a continuação do trabalho, dos caminhos, das invernadas; ele só, com trabalhar mais que todos; sofria desassombradamente todas as incomodidades; e nos caminhos, por fragosos e ásperos que fossem, era o primeiro que os acometia, pondo-se na dianteira. Passavam um dia de um lugar para outro. Salteou-os uma chuva fria e importuna, que os não largou na maior parte da jornada; e corria um vento agudo e desabrigado, que os congelava. Tinha-se adiantado o Arcebispo, segundo seu costume, que era caminhar quase sempre só pera se ocupar com mais liberdade em suas contemplações; e ia fazendo matéria de tudo quanto via no campo e na serra, para louvar a Deus. Ofereceu-se-lhe à vista, não longe do caminho, posto sobre um penedo alto e descoberto ao vento e à chuva, um menino pobre e bem mal reparado de roupa, que vigiava umas ovelhinhas que ao longe andavam pastando. Notou o Arcebispo a estância, o tempo, a idade, o vestido, a paciência do pobrezinho: e viu juntamente que ao pé do penedo se abria uma lapa, que podia ser bastante abrigo para o tempo. Movido de piedade, parou, chamou-o, e disse-lhe que se descesse abaixo pera a lapa e fugisse da chuva, pois não tinha roupa bastante pera a esperar.
– Isso não! – respondeu o pastorinho, – que, em deixando de estar alerta e com o olho aberto, vem logo o lobo e leva-me a ovelha, ou vem a raposa e mama-me o cordeiro!
– E que vai nisso? – disse o Arcebispo.
– A mi me vai muito – tornou ele, – que tenho pai em casa, que pelejará comigo, e tão bom dia se não forem mais que brados. Eu vigio o gado, ele me vigia a mim: mais vale sofrer a chuva...
Não quis o Arcebispo dar mais passo. Esperou que chegassem os da sua companhia, contou-lhes o que se passara com o menino e acrecentou:
– Este esfarrapadinho inocente ensina a Frei Bartolomeu a ser Arcebispo! Este me avisa que não deixe de acudir e visitar minhas ovelhas, por mais tempestades que fulmine o céu; que, se este, com tão pouco remédio pera as passar, todavia não foge delas, respeitando o mandado do pai mais que o descanso, que razão poderei eu dar, se, por medo de adoecer ou padecer um pouco de frio, desemparar as ovelhas cujo cuidado e vigia Cristo fiou de mim, quando me fez pastor delas?” – em Vida e Obra de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, de Frei Luís de Sousa. 
 
 
 
Convocado o terceiro Concílio de Trento pelo Papa Pio IV, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires viajou incógnito, disfarçado de simples padre, para evitar as honras que lhe eram devidas. Chegou a Trento a 18 de Maio de 1561. Durante o Concílio foi-lhe confiada a revisão dos livros que deviam ser proibidos. Notabilizou-se pelas suas intervenções, muito claras, falando principalmente sobre a reforma dos costumes eclesiásticos. Apresentou duzentas e sessenta e oito petições ao longo dos trabalhos conciliares. Duas frases atestam bem o seu pensamento sobre o assunto e a frontalidade da sua atitude: “Vossas senhorias são as fontes donde todos os prelados bebem; necessário é portanto que a água seja limpa e pura”. Ou: “Os ilustríssimos e reverendíssimos cardeais precisam duma ilustríssima e reverendíssima reforma”.
Num concílio suscitado em grande parte pelas reformas protestantes, o arcebispo de Braga afirmou que “A Igreja está mais precisada de reformas que de dogmas”.
De volta à sua arquidiocese continuou a governar ainda com mais zelo, depois das propostas e dos reparos que fizera em Trento. Esta situação levantou contra si alguns protestos e inimizades. Perante a ignorância com que se deparava, tanto entre o povo como entre os padres, organizou escolas para formação do clero e mandou ler textos seus ao povo sobre doutrina – o Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais. Escreveu trinta e dois livros, um dos quais, O Estímulo dos Pastores, já atrás citado, foi oferecido a todos os participantes no Concílio Vaticano I, em 1870 e novamente no Concílio Vaticano II, em 1962! Para dar concretização a uma das recomendações do Concílio de Trento, fundou o Seminário de Braga, que é considerado a primeira casa de formação de sacerdotes em todo o mundo.
Em relação à jurisdição eclesiástica e regalias do clero era intransigente, entrando em conflito mesmo com o rei. Em 1582, estando Portugal ocupado pelos castelhanos, Frei Bartolomeu dos Mártires renunciou ao cargo, retirando-se para o Convento de São Domingos que fundara em Viana do Castelo.
Partiu para junto de Deus a 16 de Julho de 1590. Sua Santidade João Paulo II beatificou Frei Bartolomeu dos Mártires a 4 de Novembro de 2001. Ficam ainda as palavras indignadas de Frei Bartolomeu dos Mártires, no Concílio de Trento, contra a ignorância: “Não temos quem ensine, quem confesse, nem quem pregue frutuosamente. Por isso ninguém estuda, ninguém trabalha por saber e geralmente se tem por erro gastar tempo, vida e fazenda nas Universidades: quando basta servir ociosamente ao bispo; ou a seu parente sem mais cansar, nem saber, para gozar rendas de grandes benefícios: quando vale mais a ignorância com poucas onças de favor, que a ciência e boas letras com grandes pesos de merecimento”.
 
In Orlando de Carvalho, Os Santos de João Paulo II, Lusodidacta, 2004

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