sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Ser Família


O Alex e a Bruna tinham-se separado. Continuavam a viver juntos e a assumir em conjunto as responsabilidades paternais, mas viviam em casas separadas. Eu nunca soube das razões, apenas constatava a tristeza nas caras dos dois filhos. O peso constante da incógnita sobre a casa em que iam ficar, quem os levava no dia seguinte. Os constrangimentos profissionais dos pais tinham-se tornado mais presentes e as limitações que impunham, por vezes, quase inultrapassáveis. Não eram pessoas ricas, bem pelo contrário. Solidão, tristeza, angústia e desorientação reinavam sobre aquelas quatro almas.
Um dia, eu falava com uma das crianças sobre uma actividade que íamos desenvolver e a maneira de solucionar os inconvenientes de a família viver em casas separadas.
O Filipe olhou-me com uns olhos cintilantes que nunca esquecerei e disse-me com uma simplicidade que me rasgou o coração e o impregnou de alegria:
- Já vivemos todos juntos, de novo.

No período da Quadra de Natal, entre o Natal e o Ano Novo, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Nazaré, Jesus, Maria e José. Talvez sirva de pouco reservar um dia para adorar Jesus e cultuar Maria e José, venerando a Sagrada Família em perspectivas litúrgica e de oração, se pouco ou nada obtivermos para a realidade das nossas vidas. A Sagrada Família deve inspirar um modelo de vida para as nossas famílias, para a minha família, nos dias que eu vivo, no local que habito e no círculo das pessoas que me rodeiam.

As virtudes de São José são um marco fundamental para mim, para a Igreja, para a narrativa natalícia, para a compreensão do Mistério da Encarnação, mas recontar o mesmo vezes sem conta em vez de apontar vias para a santificação de cada pai, é pouco, é muito pouco. Uma homilia tem que transmitir muito mais, nomeadamente a presença e o exemplo de José nestes dias que correm, nestes dias em que os pais trocam de casa, de esposa, de filhos. Do desempenho de José no seio da família de Nazaré, há que transmitir para a assembleia a força santificante a que ele se abriu, sempre que escutava o chamamento de Deus e Lhe obedecia colocando a salvo a família, Maria e Jesus. José não foi violento com Maria nem com Jesus, mas nunca escutei essa sua faceta numa homilia, nem em nenhum catecismo.

Neste dia, os pais e as mães têm que ser recordados que o seu tempo não lhes pertence em exclusivo. O marido pertence à mulher e a mulher ao marido. Pai e mãe pertencem aos filhos. Os filhos são responsabilidade do pai e da mãe e se seguem maus caminhos, se a imoralidade, a violência e o desinteresse pelo estudo, o trabalho e a vida, os acometem, os pais têm que assumir a sua quota de culpa.

Alguns instantes de prazer não podem significar a posse do ente criado, mas determinam indubitavelmente um encargo para a vida, o encargo de cuidar, auxiliar e amar sem restrições.

Vemos quartos de crianças e adolescentes onde milhares de euros andam espalhados pelo chão, pelos armários, pelos cantos, em brinquedos e jogos que rapidamente são inutilizados e substituídos por outros mais caros. Quantas vezes são quartos em que as crianças têm tanto, mas lhes falta quem as ampare, as guie, as oriente e as ama. Porque dar coisas compradas com dinheiro tem quase sempre muito pouco a ver com dinheiro. Sentar ao lado de uma criança pequena a bater ritmadamente com uma vara, uma caneta, um talher, em qualquer caixa oca ou outro objecto, produzindo um som ritmado, pode ser muito mais valioso que oferecer uma viatura de controlo remoto de centenas de euros. Fazer desenhos com a criança nos vidros embaciados das janelas implica tanto amor que nenhuma oferta de estojo completo de desenho se lhe pode comparar.

Que nenhum pai ou mãe permita que um telefone ou outro aparelho electrónico o substitua, porque esses dispositivos não fazem parte da família e nada existe mais importante que a família que se reúne, que dialoga, que se centra na adoração de Deus.

O divórcio que parte do facto de que os esposos deixaram de se amar é a constatação de que eles nunca se amaram. Amar não são beijos, prendas, ofertas ou sexo, pode ser tudo isso, na realidade, desde que o ponto de partida seja uma disposição para fazer o outro feliz ao ponto extremo de aceitar sofrer pelo outro. Sofrer mesmo. Afinal, Jesus morreu na Cruz para quê? Para contarmos lindas narrativas da Paixão? Para termos crucifixos? Por defender ideais? Morreu para eu saber que se digo que amo alguém, ou sou mentiroso ou tenho de estar disposto a morrer por ele numa cruz. A mãe e o pai pelo filho, o esposo pela mulher, esta pelo marido, os filhos pelos pais e irmãos.

Casamento ou celibato nunca deveriam ser encarados como meio para uma boa vida, mas como doação e consagração diante de Deus.

As pessoas podem não gostar de ouvir estes conteúdos, mas pode ser pecado não lhos transmitir. Para que possam responsavelmente decidir as suas vidas.
Amar é mais partilhar sofrimento que satisfazer caprichos. É impossível oferecer a Lua à pessoa amada, mas é encantador olharem juntos a Lua, mesmo que através de escuras e impenetráveis nuvens.

Deviam existir escolas de pais ou escolas de família, onde se aprendessem estas coisas. Todavia elas existem. São as próprias famílias em que somos criados e onde aprendemos a amar o futuro cônjuge e os filhos que hão-de vir, através do exemplo visto e aprendido dos mais velhos.

Seria o ministério de Jesus o mesmo se Maria não fosse Maria e se José fosse outro qualquer, mesmo sendo Jesus a Palavra de Deus encarnada, o Filho de Deus?

Orlando de Carvalho

domingo, 23 de dezembro de 2018

Somos filhos da Igreja


As televisões transmitem discursos do ditador assassino que controla a Coreia do Norte e todos acham normal.

As televisões informam o comentário da acéfala Fernanda Câncio acerca de “Até amanhã se Deus quiser”, e as pessoas, pelo menos, sorriem.

As televisões transmitem programação de conteúdo pornográfico e ofensivo, mas a indignação não vai além de alguns comentários de gente rapidamente catalogada como conservadora, católica ou retrógrada (em 1975 seriam contra-revolucionárias).

As televisões transmitem dias incontáveis de comentários acerca de Bruno de Carvalho, e-mails do Benfica, e ninguém pede o seu encerramento.

As televisões concedem tempo de antena a pessoas que a opinião pública considera criminosas e aos seus advogados, mas não há turbulência alguma no país.

Todos os partidos têm direito a transmissão em directo dos seus congressos. E clubes de futebol. E sorteios de futebol.

Finalmente a RTP 1 passa todos os limites e agenda a transmissão em directo de uma mensagem natalícia, logo de paz, do Patriarca de Lisboa. De quem? Do dirigente máximo da religião com maior número de seguidores em Portugal. Não se trata de uma contagem de sócios ou simpatizantes, como fazem os clubes de futebol, ou de votantes como fazem os partidos políticos. É algo tão real que dispensa contagem.

Então, surge uma macabra Associação República e Laicidade (Que é laicidade? A associação está devidamente registada?...) que é mentirosa ao afirmar que a RTP está obrigada a respeitar a laicidade do Estado; que se acha no direito de ditar como deve ser a programação da RTP e como deve estar organizada a grelha de programas. Não são mais que um grupo de frustrados incapazes de se enquadrar na sociedade e que têm de dar nas vistas e atacar a Igreja. Talvez contratarem mulheres para irem para a Sé Catedral nuas com inscrições no peito contra o Patriarca e Deus Nosso Senhor.

Que tristeza!

Senhor Patriarca, os fiéis católicos, mas não só, estão sempre esperando a habitual palavra de “Santo Natal”. Não somos a maioria silenciosa, nem a ruidosa, somos a Igreja onde está filiada a maioria dos portugueses, pelo santo baptismo.

Não se trata apenas da Igreja de Lisboa a seguir o seu Bispo, mas da Igreja de Portugal a seguir o Presidente da Conferência Episcopal Portuguesa.

Oremos, neste Natal, por todos os que não são bafejados pela sorte ou pela graça de se sentirem personagens do Presépio.



Orlando de Carvalho

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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Sabedoria


Janela de Isaac Newton, Cambridge

Dons do Espírito Santo



Sabedoria


Os gregos são o primeiro povo que define uma busca sistematizada pela sabedoria. Eles criaram e desenvolveram a filosofia.

(filos = amor + sofia = sabedoria)
De acordo com Sócrates e Platão, a mitologia foi a base de reflexão dos filósofos. Quando estes sábios procuraram estabelecer relações entre o indivíduo e a sociedade e tornam-se legisladores. Posteriormente dedicaram-se ao estudo da natureza e à procura da origem. Um passo seguinte desta evolução foi o número, a matemática e a reflexão racional desligada da materialidade. Finalmente no século V a. C. surgem os sofistas, que se dedicam essencialmente à discussão. Eles são capazes de provar que uma coisa é, mas também que não é, consoante quem lhes paga pede uma ou outra. Falam muito, são óptimos políticos, mas não lhes interessa a verdade. Com Platão e Sócrates, que coexistiram com os sofistas, a filosofia envereda pelo campo da ética e da procura da verdade.
Nos nossos dias, considera-se sábia uma pessoa que tem muitos conhecimentos, sejam eles quais forem, podendo distinguir-se diversos campos de conhecimento ou sabedoria. Noutra perspectiva, o sábio é aquele que consegue viver bem e alcançar um certo estatuto económico e social.
Vemos então que a sabedoria para as pessoas trata da quantidade e qualidade de informação que uma pessoa adquire e do modo como a utiliza.
A sabedoria é um dos dons do Espírito Santo, mas embora usemos a mesma palavra, esta sabedoria, a de Deus, nada tem a ver com aquela a que nos habituámos no quotidiano.
A Sabedoria que vem do Espírito Santo não tem que ver com a quantidade de informação que contém nem com as relações que percepcionamos entre as coisas do mundo. A Sabedoria que o Espírito Santo derrama sobre nós é aquilo que nos permite ter perante as coisas, as pessoas e as relações uma atitude idêntica à de Deus.
 
Sem-abrigo, Cambridge

Na parábola do Samaritano (Lc 10,37), Jesus ensina que, “de tantos que passaram”, apenas um teve a sabedoria para agir à maneira de Deus. Ele olhou para o desgraçado à beira do caminho com um olhar idêntico ao de Deus. O sacerdote e o levita que supostamente seriam homens de Deus, conhecedores, adoradores e ensinadores de Deus, afinal nada sabiam. Foi o estrangeiro que eles desdenhavam que agiu com Sabedoria.

Sabedoria é um dos nomes de Deus e agir com sabedoria é agir naquele momento e naquela circunstância como Deus actuaria.

Para os gregos e para as pessoas deste tempo, normalmente a sabedoria tem a ver com a procura da verdade, está revestida de incerteza e carece de pesquisa.

Na fé a sabedoria é Deus, é a verdade e não a procura desta. É plenitude e não incerteza e pesquisa.



Orlando de Carvalho